O dia
amanheceu frio e nublado. Ainda não tínhamos o sentimento de felicidade por
atingirmos o objetivo inicial da Expedição Arauto Americano. Pela manhã fomos
até a sala de jantar do hostel e fomos servidos de um café da manhã bem sem
graça. Depois de comermos voltamos ao quarto onde em pouco tempo recebemos uma
resposta de Richard. Eu quando li não pude acreditar. Dizia que não mais
poderia nos hospedar porque volta e meia recebia amigos para pousarem lá e só
tinha um colchão de casal sobrando. Disse que poderia nos ajudar nos recebendo
apenas por 2 dias, depois teríamos que achar outro lugar. Antes de vocês
pensarem “que porcaria de amizade é essa” deixem me explicar: Richard não era
meu amigo. Éramos meros conhecidos do Facebook. Nossos caminhos se cruzaram
virtualmente porque eu estive procurando trabalho voluntário anos atrás e
Richard tinha a ONG em Pisac. Conversamos e combinamos tudo pelo Facebook.
Quando cheguei lá ele antes mesmo de nos ver mudou totalmente de ideia e
ficamos desamparados.
Apesar da
atitude nada nobre de Richard, fizemos check-out no hostel e fomos até sua
casa. Precisávamos daqueles dois dias para decidirmos o que fazer. Chegando lá
batemos, batemos, batemos e nada dele atender. Pensei que talvez ele tivesse
saído. Sentamos e esperamos até que Richard surgiu, com mais de uma hora de
atraso. Era um homem aparentando quase 60 anos magro como os gravetos da árvore
da esquina. Nos cumprimentamos, entramos por um corredor até um quintal onde
haviam diversas tranqueiras jogadas. Estacionei a moto lá e ele nos levou até o
interior da casa. Não se parecia nada com uma sede de ONG. Havia uma cozinha
consideravelmente simples com utensílios que pareciam ter saído de algum sítio
arqueológico inca de tão arcaicos e sujos de poeira. Na mesa ocorria naquele
momento uma rave de formigas e outros insetos provenientes do quintal. Ele
passou um pano sobre ela e mas sem atingir as formigas, alegando que até as
22hs festas eram permitidas e as formigas são almas em processo de evolução com
uma conexão direta com a fonte divina. Richard disse que podíamos usar os
utensílios da cozinha mas de forma alguma poderíamos comer de sua comida. Mas
como gosto de viver perigosamente e desafiar regras impostas pela sociedade,
não deixei de comer um pouco de seus amendoins mais tarde, sem que soubesse.
No cômodo ao
lado havia um colchão de casal no chão, uma mesa de madeira e algumas cadeiras.
Na parede estava pregados velhos cartazes de sua ONG e desenhos feitos por
crianças. Eu ainda tentava entender a conjuntura da situação da ONG e se de
fato ela ainda existia. Richard pediu para não fazermos bagunça (já que a
bagunça já estava feita e era exclusividade do dono da casa, ele) e toda aquela
atitude dele me fez lembrar o quanto não sou fã dos americanos. Não
generalizando, mas dos que conheci até hoje considero 98% deles muito muito
muito estranhos, autoritários e não muito amigáveis. O quarto de Richard ficava
no andar de cima, que tinha acesso por uma escada no quintal. O banheiro da
casa não tinha porta. Ficava do lado de fora, em frente esta escada e a porta
da cozinha. Quando Richard saiu, após nos entregar uma cópia da chave, deixamos
nossas coisas no canto do quarto e saímos. O tempo já havia melhorado e
estávamos ansiosos para conhecermos melhor a cidade.
Pisac era
consideravelmente turística. Possuía muitas lojas de artesanato, cafés e
restaurantes para estrangeiros e arquitetura com estilo inca bastante colorido
e vivo. A praça central da cidade abrigava diariamente a feira livre onde
predominava o artesanato tradicional peruano, os souvenirs e roupas. Aos
domingos a feira era de legumes, frutas, comidas variadas e barracas servindo
almoço.
A cidadezinha
ficava no centro de um funil onde ao redor estavam imensas montanhas dos Andes.
Havia muitas ruínas incas espalhadas por estas montanhas e nos animava muito a
possibilidade de virmos a visita-las.
Aquele dia era
crucial para decidirmos nossos próximos passos na expedição. Nosso dinheiro
estava no fim e não havia possibilidade de continuarmos antes de conseguirmos
mais fundos. A melhor opção seria trabalharmos. Decidimos ficar por Pisac mesmo
e lá tentarmos algum emprego temporário. O primeiro passo seria encontrarmos
algum lugar para ficarmos durante aquele período (ou pelo menos nos próximos
dias), já que Richard nos deixou na mão. Tínhamos o equivalente a 400 reais
para acomodação, deixamos o restante para comida e outros gastos (o que não foi
muito). Iniciamos a peregrinação de hostel em hostel para sempre encontrarmos
preços caros feitos “especialmente” para estrangeiros. Mas também eu não podia
culpa-los. Nestes hostels haviam muitos europeus e americanos bicho-grilo da
nova era hospedados sem pressa de irem embora. Havia muita boa recepção e estrutura
para estrangeiros em Pisac. Mas não era nossa realidade no momento, então fomos
diminuindo o nível de nossas buscas e expectativas e começamos a perguntar nas
vendinhas onde haveria uma pousada barata. Uma delas apontou para o outro lado
da rua, um edifício de três andares que parecia abandonado. Disse que lá havia
quartos disponíveis para aluguel mensal. Logo ao lado havia outra pousada,
então decidimos nos separar. Mel ficou conversando naquela ao lado enquanto eu
atravessei a rua e fui até o prédio “abandonado”. Apertei a campainha e esperei
um bocado até alguém abrir a porta.
O rapaz se
chamava Davi, um tipo aparentando 40 anos, baixinho (como todo peruano) de
barba rala. Perguntei sobre quarto para alugar e ele disse que a pousada estava
recém-inaugurada e que seríamos os primeiros. Negociamos o valor iniciando em
600 até chegar nos 380. Mel atravessou a rua até nós e Davi nos ofereceu
mostrar as acomodações. Entramos por um longo corredor onde no fim havia no
meio dele uma porta que dava acesso à um grande salão de eventos que segundo
Davi era alugado por ele para pessoas que celebram aniversários ou outras
festas. Ao fim do corredor havia uma escadaria para acesso aos andares
superiores. Subimos por ela até o primeiro andar. Davi nos contou que estavam
nos acertos finais para enfim inaugurar a posada denominada El Gato Negro.
Nosso quarto seria o primeiro no corredor do primeiro andar. Era minúsculo, com
uma cama de casal e uma pequena cômoda com apenas duas gavetas pequenas. O
banheiro estava ao fim do corredor. Era pequeno, imundo e frio. Davi nos
garantiu que havia água quente e nos mostrou como funcionava o chuveiro.
Diferentemente do resto do Peru, aquele chuveiro era elétrico como os nossos no
Brasil. Apenas deveríamos lembrar de ligar e desligar o disjuntor cada vez que
fossemos tomar banho.
Davi nos
contou que falava um pouco de português. Que havia morado muitos anos em São
Paulo, tendo trabalhado em diversos ramos e agora apenas se dedicando à uma
loja de artesanatos peruanos que possui no centro de São Paulo. Eventualmente
fomos descobrindo todos os trambiques dele no Brasil, mas deixa isso pra lá.
Ficou acertado que na manhã seguinte estaríamos
lá e para minha tranquilidade Davi reservou um lugar bem seguro para guardar a
moto, nos fundos do salão de festas.
Retornamos à
casa de Richard com um pacote de sopa instantânea comprada no mercadinho da
cidade. A hora de tomar banho foi um momento extremamente tenso, especialmente
para Mel. O único banheiro da casa era minúsculo e ficava no lado de fora, bem
ao lado da porta da cozinha e debaixo das escadas que davam acesso ao quarto de
Richard. O banheiro não possuía porta e além de tudo um cheiro de restos
mortais de Gremlins tomava conta do lugar. O vaso sanitário, carente de assento,
abrigava um monte daquilo que não preciso nomear, com aspecto escuro e viscoso
e mole como de uma vaca com disenteria. A água era fria como o coração da sua
ex. Eu tomei banho rapidamente enquanto Mel tentava recuperar o fôlego do lado
de fora. Depois foi a vez de Mel. Me fez ficar de guarda na porta do banheiro
tapando a porta com uma toalha. Enquanto isso eu via a porta do banheiro jogada
no quintal já tomada pelas raízes e uma colonização de cupins.
Depois do
tenso banho, preparamos a sopa. Enquanto jantávamos na mesa do quarto/sala
Richard apareceu, disse que éramos todos irmãos de luz, nos abraçou e me
emprestou dois livros manuscritos por ele. Jurou morte certa caso eu não os
devolvesse, a mesma morte que me levaria à iluminação eterna. Depois disso
desapareceu.
Um pouco mais
tarde alguém bateu em nossa porta, que dava acesso à rua. Quando abri, três
meninas aparentando ter menos de 8 anos de idade perguntaram por Richard. Eu
chamei por ele mas parecia que tinha saído. Perguntaram então se ele deixou
dinheiro para elas e eu respondi que não. Sinceramente achei tudo aquilo
(somado ao comportamento das crianças) muito estranho.
Antes de
dormir deu uma olhada em seus livros. Eram sobre a nova era, Luz Divina e ascensão
da alma. Este são até assuntos que sou um tanto quanto inteirado, mas a atitude
de Richard era um pouco excêntrica para mim e não condizia tanto com tudo
aquilo. Achei que não cabia a mim julgar ou analisar aquilo tudo e já que tínhamos
um prazo para ir embora o que eu pretendia fazer seria só não mais estabelecer
amizade.
O dia foi
longo e terminou com a esperança de dias mais tranquilos pela frente.
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