8 de dez. de 2014

DIA 38 - PISAC - PERU (segundo dia)

O dia amanheceu frio e nublado. Ainda não tínhamos o sentimento de felicidade por atingirmos o objetivo inicial da Expedição Arauto Americano. Pela manhã fomos até a sala de jantar do hostel e fomos servidos de um café da manhã bem sem graça. Depois de comermos voltamos ao quarto onde em pouco tempo recebemos uma resposta de Richard. Eu quando li não pude acreditar. Dizia que não mais poderia nos hospedar porque volta e meia recebia amigos para pousarem lá e só tinha um colchão de casal sobrando. Disse que poderia nos ajudar nos recebendo apenas por 2 dias, depois teríamos que achar outro lugar. Antes de vocês pensarem “que porcaria de amizade é essa” deixem me explicar: Richard não era meu amigo. Éramos meros conhecidos do Facebook. Nossos caminhos se cruzaram virtualmente porque eu estive procurando trabalho voluntário anos atrás e Richard tinha a ONG em Pisac. Conversamos e combinamos tudo pelo Facebook. Quando cheguei lá ele antes mesmo de nos ver mudou totalmente de ideia e ficamos desamparados.
Apesar da atitude nada nobre de Richard, fizemos check-out no hostel e fomos até sua casa. Precisávamos daqueles dois dias para decidirmos o que fazer. Chegando lá batemos, batemos, batemos e nada dele atender. Pensei que talvez ele tivesse saído. Sentamos e esperamos até que Richard surgiu, com mais de uma hora de atraso. Era um homem aparentando quase 60 anos magro como os gravetos da árvore da esquina. Nos cumprimentamos, entramos por um corredor até um quintal onde haviam diversas tranqueiras jogadas. Estacionei a moto lá e ele nos levou até o interior da casa. Não se parecia nada com uma sede de ONG. Havia uma cozinha consideravelmente simples com utensílios que pareciam ter saído de algum sítio arqueológico inca de tão arcaicos e sujos de poeira. Na mesa ocorria naquele momento uma rave de formigas e outros insetos provenientes do quintal. Ele passou um pano sobre ela e mas sem atingir as formigas, alegando que até as 22hs festas eram permitidas e as formigas são almas em processo de evolução com uma conexão direta com a fonte divina. Richard disse que podíamos usar os utensílios da cozinha mas de forma alguma poderíamos comer de sua comida. Mas como gosto de viver perigosamente e desafiar regras impostas pela sociedade, não deixei de comer um pouco de seus amendoins mais tarde, sem que soubesse.
No cômodo ao lado havia um colchão de casal no chão, uma mesa de madeira e algumas cadeiras. Na parede estava pregados velhos cartazes de sua ONG e desenhos feitos por crianças. Eu ainda tentava entender a conjuntura da situação da ONG e se de fato ela ainda existia. Richard pediu para não fazermos bagunça (já que a bagunça já estava feita e era exclusividade do dono da casa, ele) e toda aquela atitude dele me fez lembrar o quanto não sou fã dos americanos. Não generalizando, mas dos que conheci até hoje considero 98% deles muito muito muito estranhos, autoritários e não muito amigáveis. O quarto de Richard ficava no andar de cima, que tinha acesso por uma escada no quintal. O banheiro da casa não tinha porta. Ficava do lado de fora, em frente esta escada e a porta da cozinha. Quando Richard saiu, após nos entregar uma cópia da chave, deixamos nossas coisas no canto do quarto e saímos. O tempo já havia melhorado e estávamos ansiosos para conhecermos melhor a cidade.
Pisac era consideravelmente turística. Possuía muitas lojas de artesanato, cafés e restaurantes para estrangeiros e arquitetura com estilo inca bastante colorido e vivo. A praça central da cidade abrigava diariamente a feira livre onde predominava o artesanato tradicional peruano, os souvenirs e roupas. Aos domingos a feira era de legumes, frutas, comidas variadas e barracas servindo almoço.
A cidadezinha ficava no centro de um funil onde ao redor estavam imensas montanhas dos Andes. Havia muitas ruínas incas espalhadas por estas montanhas e nos animava muito a possibilidade de virmos a visita-las.
Aquele dia era crucial para decidirmos nossos próximos passos na expedição. Nosso dinheiro estava no fim e não havia possibilidade de continuarmos antes de conseguirmos mais fundos. A melhor opção seria trabalharmos. Decidimos ficar por Pisac mesmo e lá tentarmos algum emprego temporário. O primeiro passo seria encontrarmos algum lugar para ficarmos durante aquele período (ou pelo menos nos próximos dias), já que Richard nos deixou na mão. Tínhamos o equivalente a 400 reais para acomodação, deixamos o restante para comida e outros gastos (o que não foi muito). Iniciamos a peregrinação de hostel em hostel para sempre encontrarmos preços caros feitos “especialmente” para estrangeiros. Mas também eu não podia culpa-los. Nestes hostels haviam muitos europeus e americanos bicho-grilo da nova era hospedados sem pressa de irem embora. Havia muita boa recepção e estrutura para estrangeiros em Pisac. Mas não era nossa realidade no momento, então fomos diminuindo o nível de nossas buscas e expectativas e começamos a perguntar nas vendinhas onde haveria uma pousada barata. Uma delas apontou para o outro lado da rua, um edifício de três andares que parecia abandonado. Disse que lá havia quartos disponíveis para aluguel mensal. Logo ao lado havia outra pousada, então decidimos nos separar. Mel ficou conversando naquela ao lado enquanto eu atravessei a rua e fui até o prédio “abandonado”. Apertei a campainha e esperei um bocado até alguém abrir a porta.
O rapaz se chamava Davi, um tipo aparentando 40 anos, baixinho (como todo peruano) de barba rala. Perguntei sobre quarto para alugar e ele disse que a pousada estava recém-inaugurada e que seríamos os primeiros. Negociamos o valor iniciando em 600 até chegar nos 380. Mel atravessou a rua até nós e Davi nos ofereceu mostrar as acomodações. Entramos por um longo corredor onde no fim havia no meio dele uma porta que dava acesso à um grande salão de eventos que segundo Davi era alugado por ele para pessoas que celebram aniversários ou outras festas. Ao fim do corredor havia uma escadaria para acesso aos andares superiores. Subimos por ela até o primeiro andar. Davi nos contou que estavam nos acertos finais para enfim inaugurar a posada denominada El Gato Negro. Nosso quarto seria o primeiro no corredor do primeiro andar. Era minúsculo, com uma cama de casal e uma pequena cômoda com apenas duas gavetas pequenas. O banheiro estava ao fim do corredor. Era pequeno, imundo e frio. Davi nos garantiu que havia água quente e nos mostrou como funcionava o chuveiro. Diferentemente do resto do Peru, aquele chuveiro era elétrico como os nossos no Brasil. Apenas deveríamos lembrar de ligar e desligar o disjuntor cada vez que fossemos tomar banho.
Davi nos contou que falava um pouco de português. Que havia morado muitos anos em São Paulo, tendo trabalhado em diversos ramos e agora apenas se dedicando à uma loja de artesanatos peruanos que possui no centro de São Paulo. Eventualmente fomos descobrindo todos os trambiques dele no Brasil, mas deixa isso pra lá. Ficou acertado que na manhã seguinte  estaríamos lá e para minha tranquilidade Davi reservou um lugar bem seguro para guardar a moto, nos fundos do salão de festas.
Retornamos à casa de Richard com um pacote de sopa instantânea comprada no mercadinho da cidade. A hora de tomar banho foi um momento extremamente tenso, especialmente para Mel. O único banheiro da casa era minúsculo e ficava no lado de fora, bem ao lado da porta da cozinha e debaixo das escadas que davam acesso ao quarto de Richard. O banheiro não possuía porta e além de tudo um cheiro de restos mortais de Gremlins tomava conta do lugar. O vaso sanitário, carente de assento, abrigava um monte daquilo que não preciso nomear, com aspecto escuro e viscoso e mole como de uma vaca com disenteria. A água era fria como o coração da sua ex. Eu tomei banho rapidamente enquanto Mel tentava recuperar o fôlego do lado de fora. Depois foi a vez de Mel. Me fez ficar de guarda na porta do banheiro tapando a porta com uma toalha. Enquanto isso eu via a porta do banheiro jogada no quintal já tomada pelas raízes e uma colonização de cupins.
Depois do tenso banho, preparamos a sopa. Enquanto jantávamos na mesa do quarto/sala Richard apareceu, disse que éramos todos irmãos de luz, nos abraçou e me emprestou dois livros manuscritos por ele. Jurou morte certa caso eu não os devolvesse, a mesma morte que me levaria à iluminação eterna. Depois disso desapareceu.
Um pouco mais tarde alguém bateu em nossa porta, que dava acesso à rua. Quando abri, três meninas aparentando ter menos de 8 anos de idade perguntaram por Richard. Eu chamei por ele mas parecia que tinha saído. Perguntaram então se ele deixou dinheiro para elas e eu respondi que não. Sinceramente achei tudo aquilo (somado ao comportamento das crianças) muito estranho.
Antes de dormir deu uma olhada em seus livros. Eram sobre a nova era, Luz Divina e ascensão da alma. Este são até assuntos que sou um tanto quanto inteirado, mas a atitude de Richard era um pouco excêntrica para mim e não condizia tanto com tudo aquilo. Achei que não cabia a mim julgar ou analisar aquilo tudo e já que tínhamos um prazo para ir embora o que eu pretendia fazer seria só não mais estabelecer amizade.

O dia foi longo e terminou com a esperança de dias mais tranquilos pela frente. 





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